quinta-feira, 5 de abril de 2012

...me admirou ser tão vermelho!


...me admirou ser tão vermelho!    

     Essa lembrança me é um tanto perturbadora, pois foi minha primeira experiência com a morte ali, de fato, acabada de acontecer.
      Foi em 1996, eu com 21 anos.
      Eu estava saindo do meu trabalhoaquele meu primeiro empregona cidade de Suzano, município do Alto Tietê, próximo à cidade de São Paulo por volta das 16h. Eu dali iria até a casa da Pris, pois ainda estávamos namorando. Não me lembro qual dia da semana era, mas como sempre, o ponto de ônibus sentido Ferraz de Vansconcelosonde moroao lado da estação de trens estava lotado. E quando digolotadome refiro ao sentido mais pleno e absurdo da palavra. Deve ser assim até hoje.
      Bem, não tinha jeito, eu tinha que me enfiar naquela balburdia e esperar meu ônibus. Fiquei bem ao extremo da ponta esquerda do ponto entre a calçada e o meio-fio da avenida. Os carros passavam e quase batiam com o retrovisor do lado do passageiro em mim.
      Estava eu, preocupado porque o ônibus estava atrasado, o ponto enchendo, enchendo... quando bem à minha esquerda, se aproximava um senhorzinho, mas beeem senhorzinho mesmo, aparentando bem uns 75 a 80 anos com um boné tão velho quanto ele cobrindo sua cabeça branquinha. Vestia um terno, se não me falha a memória, cinza claro, todo amarrotado e remendado com calça combinandoaté nos remendose um sapato que mais parecia que não existia, andando pelo meio-fio da avenida dividindo espaço com os automóveis, empurrando pelo guidom uma bicicleta tipo barra forte, ou barra circular muitíssimo velha, que carregava no bagageiro um maço relativamente grande de ervas consideradas medicinais, tipo carqueja, erva cidreira, galhos com folhas de pitangueira e mais outras que eu não soube na época identificar.
 
     Aquilo, obviamente chamou minha atenção. Este senhor não era mendigo, podia se perceber, pois apesar do andar arrastado, do corpo arcado e do rosto magro e macilento, via-se em seus olhos de um azul acinzentado muita lucidez, dignidade e simpatia. Tanta simpatia que percebeu que eu o observava curioso e quando passou por min, acenou com a cabeça com quem dizbom dia, e é claro, respondi ao aceno com um pouco de reverência.
      Assim que passou por mim, comecei a refletir sobre como tanta coisa ainda estava para acontecer em minha vida, e ao mesmo tempo, pensava pelo que aquele senhor havia passado... será que eu estaria ainda lúcido e ativo depois de mais uns 50, 60 anos? A Priscila ainda estaria ao meu lado? ...filhos, netos... nossa!... aquele senhor tinha passado por tudo o que eu ainda teria ainda de passar.
     É uma sensação estranha essa de poder ter por trás de si toda uma vida de experiências, ao mesmo tempo pensar que se tudo der certo, você ainda viverá mais umas 3 ou 4 vezes o tempo que você viveu. Essa reflexão estava me deixando meio tonto. É quase como tentar entender o infinito.
      Saí um pouco do plano dos meus pensamentos e voltei ao ponto de ônibus cheio. Percebi que o transito estava se congestionando, mas não pude ver o motivo pois não era possível ver nada à minha direita porque não conseguia me mexer pelo excesso de pessoas sem contar o amontoado de carros na avenida. Pensei:É hoje que eu chego amanhã em casa.
      Para minha surpresa, 5 minutos depois, chegou meu ônibus e para minha sorte ele parou com a porta de entrada bem à minha frente. Subi rapidamente, passei a catraca e sentei-me como de costume no último banco do lado direito. Os ônibus e carros, andavam devagar e estavam fazendo uma pequena volta, se distanciando do meio-fio da calçada mais ou menos uns 30 metros de onde eu estava.Vou conseguir ver o motivo desse trânsito todo!pensei comigo.
      E então eis o motivo. Era aquele senhor, deitado no asfalto quente, com a cabeça em uma enorme poça de sangueque me admirou ser tão vermelhoescorrendo para o meio-fio. Sua bicicleta, estava também jogada ao chão, com o maço de ervas ainda fixo no bagageiro. As pessoas apenas olhavam, sem sem aproximar, ainda esperando seus ônibus.
      Acredito que esta foi uma das cenas mais chocantes que eu presenciei. Ele não parecia ter sido atropelado. Até hoje, não sei o que houve de fato. Me é uma cena infelizmente inesquecível, que me deixou muito mexido. Provavelmente fui a última pessoa a qual ele cumprimentou.
      E pensar que toda uma vida, repleta de experiências e sabedoria acumulada, terminava daquela forma, de maneira tão desrespeitosa, tão insignificante, tão comum e sem valor aos olhos das pessoas. Passei a respeitar mais a fragilidade e o valor da vida daquele dia em diante.
      Nem preciso dizer que fui uma péssima companhia para a Pris naquela tarde.

Eder Benedetti

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