domingo, 8 de janeiro de 2012

Irmão


Irmão.

Uma certa manhã, a caminho de meu trabalho, entrei por um túnel que passa por baixo de uma avenida e que dá acesso à estação de trens, túnel esse que abrigava alguns moradores de rua que resolveram passar a noite lá.
Infelizmente, essa é uma cena corriqueira, pois todos os dias passo pelo mesmo túnel e só vejo o número dessas pessoas aumentar.
Tratando-se de uma cena costumeira, eu não deveria me impressionar, apesar do absurdo, mas neste dia me despertou a atenção para toda aquela situação um verso escrito à giz branco em uma das paredes do túnel logo acima de onde uma dessas pessoas dormiam, este um homem em estado deplorável se comparado aos outros habitantes noturnos do túnel, o qual era quase impossível determinar a idade, totalmente cercado por papel amassado, sacolinhas plásticas de supermercado e algumas pequenas botijas plásticas de cachaça barata a qual, não tenho certeza chamam-se “corotes”.
O tal verso e a cena me impactaram sobremaneira. Eis o tal verso:

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.”

Naquele momento, o verso meio que devolveu a condição humana a aquela pobre criatura, era como que se ele dissese mesmo que dormindo “Eu sou!”.
O impacto em mim foi tão forte que cheguei a decorar o verso e ele e a cena não sairam da minha cabeça por semanas.
Mas fez-se então um mistério: Quem teria escrito aquilo, e justamente naquele local? Poderia ter sido aquele pobre homem, mas o verso estava escrito em um português tão refinado e tão bem disposto artísticamente que duvidei que tivesse sido ele ou outro daqueles moradores do túnel, apesar de saber que muitas pessoas letradas e um dia de alguma posse se perdem na vida em meio ao alcool e às drogas.
Fiz uma breve pesquisa no Google e descobri que esse verso faz parte de um poema de uma das mais, se não for a mais talentosa poetiza brasileira, Cecília Meireles.
O poema original chama-se MOTIVO. Ei-lo:

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Trata-se portanto de um poema que traduz sua posição como poetiza.
Incrivel como aquele fragmento da poezia traduzia tão bela e tragicamente a condição dos moradores de rua.
Acredito que isto demonstra como a arte pode nos trazer de volta à verdadeira realidade.

Eder Benedetti – Domingo, 08 de Janeiro de 2012.

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